domingo, 10 de novembro de 2013

Cogito, ergo sunt... “Penso, logo existo” Descartes.

Waldizinho Fragoso, fundador e professor do Educandário Rui Barbosa, era tido por toda Mirabela da Serra como o mais culto das redondezas. Nas quermesses de São Sebastião virava e mexia estava a declamar versos de Camões ou Bilac.

Nas solenidades da câmara seus discursos eram de uma belezura só. Ninguém entendia nada, só ele, mas que eram uma belezura, ah isto eram... O professor sempre com o seu chapéu panamá á mão, não terminava uma prosa sem uma alusão em latim: - Veristas vincit. (A verdade vence).

Porem, antes que um grande letrado, o professor eram acima de tudo um pródigo sábio. Casado há anos com D. Socorro do Perpetuo, velha parteira que trouxe ao mundo metade de Mirabela e não tendo filhos, acabaram adotando fraternalmente durante anos todos os filhos da ilustre cidade com lições paternais.

Quando o prefeito Idalício Porqueiro, antigo aluno, veio buscando seu apoio a sua candidatura assegurando serem injuriosas e difamatórias as afirmações contra sua pessoal, o educador polidamente citou, saindo de fino: - Vox populi, vox Dei. (A voz do povo é a voz de Deus).

Apreciador de uma boa cachaça era figura carimbada ao cair da tarde no empório do Olímpio Espanhol onde começava explicando, tal como Lulu Bergantim, por que não atravessou o Rubicão e após a terceira doze conclamava ao povo a se unirem a queda das muralhas de Jericó.

Numa destas noites, o vereador Nilo Gentil que lá se encontrava atacava a retidão do alcaide Idalício e queria a todo custo dirigir-se a prefeitura para tirar satisfações sobre uma obra de saneamento que fora embargada, acreditando-se por motivos escusos.

O amanuense que tudo assistia em profundo silencio em dado momento balbuciou do fundo do salão: - Abundans cautela non nocet (Cautela em excesso não faz mal a ninguém). Em seguida brindou os presentes com o seguinte ensinamento, que escutaram sorvidos em profundo silencio:

Certa vez uma menina ganhou um brinquedo. Uma amiguinha foi até sua casa para brincar. Mas a menina tinha que sair com a mãe. A amiga pediu que deixasse ficar brincando com seu brinquedo até que ela voltasse. Ela não gostou muito da ideia, mas por insistência da mãe, concordou.

Ao retornar para casa, a amiguinha já não estava e tinha deixado o brinquedo todo quebrado. Furiosa, no mesmo instante quis ir até à casa da amiga para brigar, mas a mãe ponderou:

 - Você se lembra daquela vez que um cavalo jogou lama no seu sapato? Ao chegar em casa você queria limpar imediatamente  mas sua avó não deixou. Ela falou que você deveria primeiro deixar o barro secar, pois depois ficaria mais fácil limpar...

E prosseguiu dizendo: - Com a raiva é a mesma coisa. Deixe a raiva secar primeiro, depois ficará bem mais fácil resolver tudo.

Mais tarde, a campainha tocou: era a amiga trazendo um brinquedo novo... Disse que não tinha sido culpa dela, e sim de um menino invejoso que, por maldade, havia quebrado o brinquedo quando ela brincava com ele no jardim.

E a menina agradecida respondeu: - Não faz mal, minha raiva já secou! E arrematou o sábio catedrático: - Accipere quam facere praetat injuriam (antes sofrer o mal que fazê-lo).

Este episódio, ao retornar para a pensão me fez pensar quantas vezes não deixei o barro secar me indispondo desnecessariamente em meu dia-a-dia, na família, na escola, em casa ou no trabalho. Se tivesse segurado meus ímpetos, deixando secar o barro da minha ira para somente depois limpa-lo, teria evitado cometer tantas injustiças com pessoas que amo!

Pena que não posso mudar o início de varias situações que comecei, mas que bom que posso e devo alterar o seu o final!


Que JC ilumine!

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O funesto caso de Durval Perneta...

Nunca entendi direito por que cemitérios possuem muros, mesmo por que quem está dentro não vai sair e os que estão fora não querem entrar, pelo menos na pratica! A maioria dos vivos detestam o ambiente, pois os fazem lembrar como são frágeis e se encontram tão perto da morte. O mesmo não se aplica para os diletos moradores do lugar, que permanecem lá sem reclamar de nadinha.

Contrariando a opinião geral, existia em Mirabela da Serra um distinto morador que adorava o espaço. Era Durval Perneta, branquelo, careca e mirradinho que de perneta não tinha nada apenas mancava de uma perna e por isso ganhou logo esta alcunha.

O dito, todo santo dia visitava as lápides e ficava horas a contempla-las. No início a população acreditava que ele era meio destrambelhado, mas logo começaram os cochichos que ele tinha parte com o “coisa ruim” e só ia lá para visita-lo.

Ate no empório do Seu Olímpio Espanhol, virava e mexia alguém tocava no assunto. Contavam lá que as incursões começaram no dia que Rutinha Alvarenga, de quem ele era noivo e jurado seu amor eterno lá foi enterrada. Na verdade o que ele tinha era um pacto com a saudade que ruminava dentro dele e teimava em não abandona-lo.

Mas como disse no começo, a morte vem para todos e num belo dia ela sorteou o Durval, justamente quando ia de jardineira de Mirabela da Serra para Capim Vermelho. Foi um acidente horroroso, daqueles de aparecer na televisão. O certo que além dele, encontrava também entre as vitimas o Tonho Bastos, defunto grandão, putrefeito e pavoroso daqueles de assustar até na igreja, ao qual Rutinha em vida tinha certo capricho.

Foi uma festa fúnebre o encontro da falecida com Durval que não podia se sentir mais feliz. Tudo era só amor. Porem o coração dos outros é um terreno desconhecido, tanto para vivo quanto para morto e como em cemitério é aquela monotonia, com passar do tempo o Tonho Bastos começou a rodear a morta. Bastava o Durval sair para assombrar um barracão que o rufião desencarnado ia lampeiro ofertar a moribunda alguns cravos de defunto arrancados de coroas por ali existentes.

A finada, seduzida ficava mais e mais com os olhinhos pestilentos arrastados pro lado do tinhoso. Logo começaram a dar umas sumidas do cemitério, até que num chuvoso dia de finados o Durval depois de procurar embaixo de cada cruz encontro-os no maior assanhamento e pouca vergonha atrás de um jazigo afastado que por lá existia.

Dizem que ele tomou um porre de matar lá no empório do espanhol, mas isto ninguém confirma, mesmo por que não ficou viva alma quando ele adentrou no recinto pedindo uma pinga. Naquele dia o freguês que encontraram mais perto já estava a menos de duas léguas da capital.

A partir dali ele tornou-se um ébrio inveterado. Não comparecia mais na procissão das almas penadas. Chegava atrasado para assombrar as casas, isto quando ia e vivia bêbado caído entre os mausoléus. E imaginar que em vida um homem de conduta ilibada... Agora um féretro prostrado e humilhado!

Vejam só o que o cadáver de uma desavergonhada pode fazer a um cadavérico escarnecido... Numa noite de lua cheia, Durval enforcou-se num galho seco de uma tétrica arvore próxima a capela do velório, tendo a coruja como solitária testemunha de seu calvário final.

De Bastos e Rutinha ninguém mais deu noticia. Apenas um lobisomem disse tê-los vistos pela ultima vez retornando para o fundo da catacumba donde saíram, outras almas maledicentes afirmaram que fugiram para assombrarem juntos uma quitinete sintecada em Copacabana... Já poucos falam que ao ser abandonada por Bastos, partiu para vida fácil na capital mineira, chegando ate ficar conhecida pelo vulgo de “Loira do Bonfim”. Toda vez que alguém assuntava pelos fatos, o professor Waldizinho Fragoso disparava no seu latim: - Muliere ne credas, ne mortuae quidam! (ª)

Por isso, nas noites de sexta feira 13, ninguém em Mirabela da Serra deixa o fogão de lenha aceso, para não correr o risco de ver penetrar o fantasma embriagado de Durval Perneta em busca de um tira-gosto, ate que não por medo, mas se já é difícil suportar seu odor apodrecido, muito pior seus lamentos lacrimosos para defunto nenhum botar defeito.

Afinal de contas se conversa de bêbado vivo já é ruim, morto é muito pior, dura uma eternidade!

Que JC ilumine!


a   (a) -    Não acredite em algumas mulheres, nem mesmo morta.